Que não seja um retrocesso ao antigo Ensino Médio

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*Jacir Venturi  

A implantação do Novo Ensino Médio, aprovado em 2017 pela Lei nº 13.415, teve o condão de ampliar a carga horária para 3.000 h e promover uma nova arquitetura curricular, bem mais contemporânea, enxuta, interdisciplinar e com significativo protagonismo do aluno. Para permitir esses aprimoramentos, o conteúdo do antigo Ensino Médio, para o qual eram destinadas 2.400 h, foi compilado em 1.800 h, naquilo que passou a se chamar Formação Geral Básica (FGB), sendo comum a todos os estudantes e composta de 13 componentes curriculares obrigatórios e clássicos, como Língua Portuguesa, Inglês, Matemática, Física, Filosofia, Arte etc. E, nas 1.200 h restantes, a inovação mais significativa: uma ampla flexibilidade de escolha nos Itinerários Formativos (IF), sendo possível optar entre uma Formação Técnica e Profissional ou a preparação para ingressar no Ensino Superior, neste caso priorizando o aprofundamento nos componentes de mais interesse para o curso de graduação escolhido.  

Essas inovações seguem o percurso trilhado nas duas últimas décadas pelos países com bom desempenho educacional, trazendo um maior equilíbrio entre as competências e habilidades cognitivas e as socioemocionais, ambas muito relevantes para a vida pessoal e profissional contemporânea. Opção acertada, pois vivenciamos um novo cenário de mudanças avassaladoras, em razão dos avanços das plataformas e tecnologias (com enormes impactos na educação), sendo a Inteligência Artificial a mais relevante delas.  

Esse formato ficou conhecido no Brasil como Novo Ensino Médio e foi efetivamente implementado em 2022, cabendo à União a coordenação da Política Nacional de Educação, porém com liberalidade para as Secretarias Estaduais de Educação no processo de escolha dos modelos. Houve, sim, falhas graves em muitas instituições de ensino, especialmente em relação aos Itinerários Formativos, que ficaram por demais dispersos e, em alguns casos, extravagantes. Sabedora desse imbróglio, no governo anterior a gestão do MEC (pela qual passaram quatro ministros insuficientemente preparados para o mister) errou, pois deveria definir um regramento para conter essa desbragada abertura de excessivos componentes curriculares. Merecidamente, virou motivo de críticas severas de educadores e de chacotas da oposição. Entretanto, também se equivocou o atual governo ao não estabelecer, como meta primeira, regras, limites e diretrizes para criação e oferta de componentes curriculares para os IF.  Por que tanta algaravia, tantas incertezas aos estudantes e professores ao longo de 2023 e 1º semestre de 2024, propondo modificações que desfiguravam por completo a Lei 13.415/17, indo além, inclusive, ao propor a sua revogação?  

Há que se fazer justiça em reconhecer que mudanças tão significativas e profundas em relação ao antigo Ensino Médio demandaram um esforço hercúleo (inclusive financeiro) das instituições de ensino (e, para agravar, a pandemia). Uma nova matriz curricular exigiu a contratação de novos professores ou a realocação de profissionais em outros componentes curriculares, para os quais necessitariam de uma intensa capacitação. Precisou-se, ainda, realizar uma reconfiguração física de uma parte das escolas e investimento pecuniário vultoso que não pode ser desconsiderado – “pouco mais de dois bilhões de reais foram gastos pelas secretarias estaduais na implementação do novo Ensino Médio”, afirma Cláudia Costin. Tal organização foi ainda prejudicada pela covid-19 e pela inação de muitos estados.  

Todavia, nos 14 últimos meses, a mãe de todas as batalhas foi a carga horária da Formação Geral Básica: para a atual gestão do MEC, deveria ser ampliada para 2.400 h, uma verdadeira contrarreforma da Lei 13.415/17, que determinava justamente a redução para 1.800 h, com maior ênfase aos componentes curriculares convencionais na 1ª série, bem como a inclusão do componente curricular Projeto de Vida (relevante para orientar o estudante a pensar com mais clareza no seu futuro profissional, escolha a ser feita na matrícula da 2ª série). Na 2ª e 3ª séries, era possibilitado ao estudante reduzir a carga horária da FGB, para um aprofundamento nas áreas relativas ao curso superior pretendido ou, então, optar por uma Formação Técnica e Profissional, que traz a sedução do ingresso mais rápido no mercado de trabalho. 

Em vez de 2.400 h (80%), como quer o governo, e considerando as atuais 1.800 h (60%), pergunto: por que não padronizar para todos os estudantes uma FGB de 2.200 h? Presumo que uma proposta intermediária do total da carga horária de 3.000 h é a que melhor contemplaria aspectos pedagógicos, financeiros e principalmente de gestão por parte dos diretores. Como a política é a arte da busca pelo possível, em termos de negociação o “caminho do meio” seria certamente mais palatável para as correntes antagônicas.

Mas ao fim e ao cabo, prevaleceu carga horária de 2.400 h na votação da Câmara em 20/03/24, e o PL nº 5230 (Projeto de Lei) foi assim encaminhado ao Senado com a FGB de 2.400 h. Na 2ª quinzena de junho, a senadora Dorinha, como relatora, apresentou uma primeira versão reduzindo para 2.200 h, convergindo para aquilo que defendemos. Entretanto, a relatora recuou, rendendo-se à pressão do governo, e apresentou uma nova proposta retornando às 2.400 h e possibilitando as 2.200 h apenas para a Formação Técnica e Profissional, que têm que comportar cursos não só de 800 h, mas também de 1.000 e 1.200h. Além disso, também aprovada no Senado em 19/06/24 por votação simbólica, a inserção do Espanhol como componente curricular obrigatório (além do Inglês). Nossa posição é que se mantenha como uma disciplina optativa, pois aulas dedicadas ao espanhol significa menos aulas para outros conteúdos. Ademais cria mais um complicador para as secretarias estaduais de educação, pois não há professores licenciados em Espanhol para atender os 7,7 milhões de estudantes matriculados nas 254 mil turmas do Ensino Médio ( dados de 2023 do Inep), quer nas cidades de porte médio, quer nos rincões deste Brasilzão.  

Outras alterações aprovadas pelo Senado, sob o meu modesto prisma, tornam ainda mais indigesta a aplicação prática de todas essas mudanças. Exemplos: ainda mais restritivas ficaram as normas para a EaD, permitidas apenas “em casos de excepcionalidade emergencial temporária”, para a contratação de docentes de notório saber (importante para os cursos técnicos) e como também critérios mais complexos para se implantarem os cursos de Formação Técnica e Profissional. Enfim, um presente de grego, ou talvez pior, um nó górdio para o relator deputado Mendonça Filho. Conquanto a senadora Dorinha tenha acertado em dois temas: 1) ao propor que o Enem contemple tão somente os conteúdos da FGB; 2) uma nova redação de forma que impeça que os estágios dos estudantes possam se converter em trabalho infantil. Ademais é necessário que deputado Mendonça Filho se atenha à obrigatoriedade de abrir turmas quando houver demanda para o Ensino Médio regular noturno em todos os municípios do país (lembramos que 1.257 dos municípios têm menos de 5.000 habitantes). Forças políticas pressionarão para que se abra uma turma de 1ª série noturna com cinco alunos (pois se aprovada estaria na lei), sendo elevada a probabilidade de na 3ª série existirem um ou dois concluintes apenas.  

Com o retorno do PL à Câmara dos Deputados – em virtude de tantas mudanças –, é tempo, é hora, de a Comissão de Educação se debruçar sobre todas essas questões, sem vieses políticos ou ideológicos, e debater com renomados educadores a respeito da conveniência de o Espanhol permanecer como um componente opcional, bem como as 2.400 h para a FGB, carga horária que traz um estigma, pois coincide exatamente com o que de pior tivemos na história recente da combalida educação deste país – o antigo Ensino Médio, que vigorou até 2021. Cabe também o debate se o PL nº 5230 deve ser implementado daqui a poucos meses, ou seja, já em 2025, uma vez que se requer tempo para a reformulação do material didático e a readequação do corpo docente, com vistas a uma nova matriz curricular, mesmo que a vigente tenha apenas três aninhos. 

Para os que foram estudantes nas gerações passadas, pode parecer sedutor esse retorno a uma visão clássica, tradicional, mas o mundo mudou, e muito: os jovens atualmente são diferentes daqueles das décadas anteriores. E, principalmente, todas as pesquisas indicam que os estudantes preferem se aprofundar em áreas do curso de graduação no qual pretendem ingressar ou, então, seguir uma Formação Técnica e Profissional, o que é corroborado por um levantamento com abrangência nacional, aplicado em abril de 2022 pelo Datafolha, sob encomenda do Todos Pela Educação, em que 90% dos estudantes do Ensino Médio são favoráveis que nessa etapa seja dada a opção de aprofundamento em uma área do conhecimento ou em um dos cursos técnicos – já visando ao mercado de trabalho ou a uma faculdade.  

Ademais, a Formação Técnica e Profissional é tão necessária e importante para o desenvolvimento do país que a Lei 13.415/17 muito bem oportunizou – e na prática está acontecendo – um aumento na oferta. As estatísticas nacionais indicam um forte incremento nas matrículas na Educação Profissional (segundo dados a partir de 2022, mais que o dobro). Especificamente no Paraná, de 11% dos ingressantes em cursos técnicos no ano de 2021 elevou-se para 32% em 2024. A Educação Profissional tem o mérito de reduzir a evasão e a reprovação, especialmente quando as ofertas são articuladas com as demandas regionais, pois privilegia a aplicação prática dos conhecimentos teóricos ministrados e oportuniza a monetização com o ingresso no mercado de trabalho.  Enfim partir de 2022, com o Novo Ensino Médio, houve um bem-vindo despertar, uma mola propulsora, um ecossistema propício para uma oferta mais significativa de matrículas para os cursos profissionalizantes

É impossível deixar de perguntar: corre-se ou não o risco de um retrocesso ao antigo Ensino Médio com a aprovação das 2.400 h (para a FGB) e uma parte dos professores voltando a ensinar penduricalhos desnecessários e desmotivantes nos 13 – ou 14, se confirmada a inclusão do Espanhol – componentes curriculares? Um aluno que, por exemplo, queira prestar vestibular para o curso de Direito, na FGB de 2.400 h terá de assistir a aulas de Física, Química e Matemática iguais às de seu colega de classe que ingressará em Engenharia. Em contrapartida, se a carga horária da FGB fosse de 2.200 h, esse mesmo futuro advogado teria mais aulas para se aprofundar em Língua Portuguesa, Inglês, História, Geografia, Arte, Filosofia e Sociologia. Faz muito mais sentido, e é o que acontece em países desenvolvidos, pois são priorizadas as competências e habilidades efetivamente necessárias a um bom desempenho acadêmico e profissional na carreira.  

Ironicamente, foram justamente estes os principais motivos de até 2021 (último ano do antigo Ensino Médio) o Brasil apresentar na 3ª série um patamar ignominioso, comprovado pelos resultados do Ideb e outras mensurações nacionais ou internacionais, o que, além de ampliar desigualdades em relação à parcela socialmente mais vulnerável da população, gera gigantescos índices de abandono escolar. Em 2021, estudos patrocinados pela Federação das Indústrias do RJ (Firjan) demonstraram que, anualmente, meio milhão de adolescentes brasileiros abandonavam a escola, a um custo de 135 bilhões de reais por ano.  

Recente divulgação do IBGE, tendo por base dados de 2021, mostrou que a taxa de conclusão do antigo Ensino Médio no Brasil, em relação aos ingressantes, foi de 73,3% (nos EUA, é de 94,5%), com o agravante adicional de uma elevada distorção idade/série. Em comparação a países do G20, ocupamos a 5ª posição – de trás para a frente, entre os piores. Uma verdadeira tragédia nacional, ano após ano, enxugando gelo, com índices elevadíssimos de evasão e reprovação, ilustrando o cenário atual de 12,7 milhões de jovens de 15 a 29 anos que nem estudam, nem trabalham, denominados “nem-nem”.  

Para clareza, já me situando na categoria dos 60+, afirmo ao leitor que muito valorizo o conteúdo clássico, acadêmico, no entanto não se pode deixar de considerar que apenas 36% de nossos alunos de escolas públicas ingressam no Ensino Superior, ainda de acordo com dados do IBGE. Um índice de per si baixo, especialmente se levarmos em conta o benefício das cotas sociais, reiterando a necessidade de serem excluídos aqueles conteúdos sem serventia para a futura vida acadêmica e profissional.

Assim, clamo e conclamo para que todo esse imbróglio legislativo e administrativo não termine gerando o arremedo do antigo Ensino Médio, que produziu um contingente gigantesco de analfabetos funcionais, como demonstrou o último resultado do Pisa – estudantes de 15 anos que não souberam resolver problemas simples de juros, regra de três, proporções. Se parte da culpa está no desinteresse dos estudantes, a outra parte cabe aos professores e ao sistema como um todo, por privilegiarem aulas descontextualizadas e com conteúdos desmotivadores (em tom de blague, professores se comprazem em ensinar a calcular a apótema de um eneágono). Espera-se, sim, que os Itinerários Formativos também contemplem componentes curriculares atrativos, contemporâneos e relevantes, como Educação Financeira, Educação Digital e Pensamento Computacional, somando-se ao Projeto de Vida. A propósito, há poucas semanas já anunciado pelos organizadores, que a prova do Pisa de 2025 vai avaliar também as competências tecnológicas para o mundo digital. 

E finalizo com os necessários pedidos de desculpas ao paciente leitor pela extensão deste texto. Estou convicto de que ajustes, melhorias e adequações são imprescindíveis no denominado Novo Ensino Médio, tanto sob o prisma pedagógico quanto social. Porém, sem voltarmos ao deletério modelo anterior. Vamos sim desideologizar, despolarizar o ambiente escolar e educacional. Os vieses, os extremos, os corporativismos muito comprometem o futuro do nosso Brasil, que da educação de qualidade depende para progredir, formar capital humano e promover inclusão social.  

*Jacir J. Venturi participou de duas audiências públicas sobre o tema em Brasília, como representante do Conselho Estadual de Educação do Paraná e da Federação das Escolas Privadas do Brasil. Até recentemente, foi professor e gestor escolar do Ensino Médio, no qual atuou por cinco décadas, em escolas públicas e privadas e  da UFPR, PUCPR e Universidade Positivo. Também foi Presidente do Sinepe/PR (entidade que congrega as escolas privadas do PR).

PS.: as manifestações de sugestões ou críticas (que considero construtivas) presentes neste artigo não refletem necessariamente as entidades nas quais atuo ou atuei, até pela complexidade deste tema e pela ampla diversidade de opiniões de meus colegas de trabalho. 

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